terça-feira, março 31, 2009

Onipresença

Você foi embora, sua carne desprendeu-se da minha, mas seu cheiro ainda continuava naquele parco pedaço de pano. E não apenas seu cheiro, mas os seus hábitos e suas manias sempre adoravam se manifestar - em mim mesmo, naturalmente.
E eu ainda ouvia você dizendo que não gostava da minha bagunça, da minha demora, dos meus falatórios descontínuos e embriagados. E podia inclusive vê-lo deitado na cama, dormindo como um bebê, enquanto eu, bobo como sou, ria discretamente. Podia também relembrar cada uma de nossas poucas brigas, cada um de nossos muitos sexos lunáticos, cada uma de nossas inconstantes comemorações lúdicas sem motivo. Podia ver o branco do seu sorriso, o doce do seu carinho, o torto dos seus dedos do pé. Tudo, tudo mesmo...

O que eu mais tenho medo é disto: sua onipresença. Constante, que transformou cada vez mais o meu “eu” em você. E não vice-e-versa.

terça-feira, março 24, 2009

Abismo

Nunca ninguém me disse que cair ia ser fácil. E, mesmo que o tivessem dito, pouco importaria, uma vez que existem coisas pelas quais nós temos de passar para sentir à flor da pele as intempéries – que nunca são poucas. Entretanto, muitos disseram pra mim que retomar poderia ser muito fácil. Encorajar-se também. Voltar a encher-se de si idem. Porém, nenhuma direção é capaz de apontar força. Nem do corpo, nem da mente.

E continuo deitado, caído e imóvel dentro de um roteiro dadaísta sem fim. É como se o poeta tivesse errado nos seus versos – no meio do caminho não havia uma pedra. Havia, pois, um abismo.

sexta-feira, março 20, 2009

Tudo e só isso


A linha mais que tênue entre o quase e o feito. A falta de coragem, a vergonha, a timidez demasiada - sem palavras pra explicar a impotência do sentimento pelo qual é tomado o corpo num momento desses. Frio na barriga e misto de medo com insegurança, sempre um martírio doído, doído...
E a força do momento - impulso gritante: POR QUE fui fazer isso? Se não tivesse me entregado ao impulso, iria sofrer por mais de 500 intermináveis minutos, mas, ao final, diria que fui forte e que resisti, que venci. Tolo seria. Pois ainda sim me restaria aquela vontade de ultrapassar a linha tênue, de gritar, de extravasar todo o meu sentimento como a mais louca e descabelada das criaturas.

O que me resta agora? Lembranças do passado, que vêm à mente tão doloridas, daquelas que nunca são dissolvidas pelo tempo. Misto de dor, alegria, fluxos contínuos, e descontínuos, e desalinhados. Até certo arrependimento. Tudo e só isso.
Foto: capa de "No Line on The Horizon", U2

terça-feira, março 03, 2009

Tentativas

E de repente você percebe que é fraco, que erra, que sente raiva, que se entrega, que é vulnerável, que fala sem pensar. Percebe que não consegue mudar certas coisas, que chora, que se sente angustiado, que sente dor, que se auto flagela, que busca o impossível.
Que não tem paciência, que não é tão amável, que não tem o que quer, que não ama o que tem, que não se sente completo, que faz por fazer. Percebe também que não sabe amar, não sabe cuidar, não mais se alegra, não mais tem prazer. Não vê mais sentido, não segue mais conselhos, não sabe mais ver - nem viver.

E tenta não fazer mais errado, tenta não sentir inveja, tenta ser mais duro, mais honesto, mais autêntico. Tenta ser mais amável, mais solidário, mais correto, mais ecológico, mais verossímil. Tenta rir, tenta saber ser amado, tenta não se machucar, tenta não ser mais enganado.

E, por fim, olha pra trás e chega à conclusão de que a vida não passou de tentativas. Todas frustradas.