terça-feira, abril 17, 2007

Sábias Palavras

Folha de São Paulo, 17/04/07, caderno Cotidiano.

RUBEM ALVES
Cuidados paliativos

Crescimento sem limites num planeta que tem limites não é possível. Uma hora o "Dia do Julgamento" chega

FAZ ALGUNS ANOS escrevi um livrinho no qual falava sobre a necessidade de se criar uma nova especialidade ("O médico", Ed. Papirus). Assim eu argumentava:A vida começa com uma chegada. Termina com uma despedida. Chegada e partida são, igualmente, partes da vida.A gente prepara com carinho e alegria a chegada. Tem de preparar também com carinho e tristeza a despedida.
A obstetrícia é a especialidade que cuida dos que estão chegando.Pensei então na necessidade de se criar uma especialidade que cuidasse dos que estão se despedindo. Até inventei um nome para ela: "morienterapia", combinação de duas palavras: "moriens", "que está morrendo" e "therapeuein" que quer dizer "cuidar".Passado o tempo fiquei sabendo que uma nova especialidade havia nascido: "cuidados paliativos". "Paliativo" é algo que alivia mas não resolve.
O diagnóstico está feito mas os médicos sabem que não há nada a ser feito: o paciente vai morrer.Os que se dedicam aos cuidados paliativos são aqueles que, sabendo da inutilidade dos tratamentos, ficam ao lado do enfermo para garantir que a sua partida seja a menos dolorosa possível, sem dores nem ansiedade. Acho isso uma coisa muito bonita.Os "cuidados paliativos" me vieram à cabeça quando pensei nessa enferma tão querida, a nossa Terra, mãe de onde viemos e de quem dependemos. Se ela morrer, morreremos também.Sou favorável a todas as medidas para prolongar a sua vida: educação, reflorestamento, proteção das florestas e dos mananciais de água, despoluição dos rios, diminuição da emissão de gases pelos aviões, carros e fábricas...Mas todas essas medidas são "cuidados paliativos". Não evitarão que nossa Terra morra. Elas não vão às raízes da enfermidade mortal.Quando a doença é feia e provoca dor, a gente se movimenta.
Mas a enfermidade de que sofre a Terra é prazerosa, cria objetos maravilhosos que todos desejam e os países brigam uns com os outros para ter mais dessa deliciosa enfermidade. Enquanto os cientistas anunciavam o efeito estufa em Paris, no Brasil os governantes e economistas discutiam medidas para que ficássemos mais doentes e mais felizes!"Crescimento econômico": esse é o nome da doença. Há muito que se sabe que a Terra sofre dessa doença. Foi anunciado em 1968 pelo "Clube de Roma" no seu relatório "Os limites do crescimento". Crescimento sem limites num planeta que tem limites não é possível. Mais cedo ou mais tarde o "Dia do Julgamento" chega. Mas ninguém ligou.
Essa doença é mortal porque, para haver crescimento econômico é preciso que haja aumento no consumo de energia. Aumento de energia implica aumento do calor na superfície da Terra. O aumento do calor, por sua vez, aumentará o ritmo do aquecimento global.
Já se fazem previsões sinistras sobre o que acontecerá quando os bilhões de chineses, acometidos da deliciosa doença do "crescimento econômico", atingirem o nível de "prosperidade" dos Estados Unidos...
Resta-nos o conselho que o médico deu a Manoel Bandeira, tuberculoso:
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito está infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

domingo, abril 01, 2007

Amor e ódio


Eu te amava mais do que aquela minha coleção de discos preferida. E te amava mesmo quando queria odiar. E amava o jeito que você me olhava, que você me tocava, que você simplesmente respirava. Pois é, seu respiro era pra mim como a mais clichê das poesias. Eu amava aqueles seus pés tortos, aquela sua barriguinha saliente, aquele seu macacão listrado. E amava seus erros, seus acertos, suas dúvidas e suas conquistas. Amava ouvir você dizer que me amava. E amava mais quando você transformava o silêncio no melhor dos barulhos.


Como num piscar de olhos, eu te odiei mais do que os calos dos meus pés. E te odiei porque sabia que não conseguia odiar. Tentei odiar o seu cheiro, seu suor, sua calça piegas. Tentei odiar todo aquele seu lado pseudo-intelectual quando falava da poesia de Mayakovsky ou de música dodecafônica. Tentei odiar seu abraço, seu beijo, seu calor. Te odiava pelos defeitos, mais ainda pelas qualidades. Tentei te subestimar, perceber o quão vazio era o seu discurso. Tentei dizer que você era nada.


Mesmo sabendo que, na verdade, o que eu odiava mesmo era o simples e complexo fato de te amar...